O marco temporal é apenas um dos problemas do Projeto de Lei 2903, e talvez nem seja o maior deles. Aprovado como PL 490/2017 na Câmara dos Deputados, ao chegar ao Senado, ganhou novo número (2903) dos parlamentares e nova denominação dos indígenas e ativistas contrários ao projeto: de PL do Marco Temporal virou PL do Genocídio Indígena.
A questão é que o Senado aprovou um texto cheio de “jabutis” (emendas-surpresa) que libera a exploração dos territórios indígenas para atividades econômicas e tornam os povos isolados ainda mais vulneráveis, liberando o contato, proibido pela Funai. O texto seguiu para sanção ou veto presidencial.
Por isso, 61 organizações da sociedade civil se uniram e redigiram uma carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva para pedir o veto integral do projeto por se tratar da “maior violação aos direitos humanos e às terras indígenas desde a redemocratização”.
Para essas entidades, à Lula só resta vetá-lo na íntegra, se quiser se manter fiel à Constituição, às promessas que fez aos povos indígenas e aos discursos de proteção ao clima que tem feito pelo mundo, também na Assembleia da ONU.
PL 2903 contra direitos indígenas
Na carta, as organizações destacam que o PL “desmonta, em vários de seus dispositivos, o próprio conceito de terra indígena consagrado da Carta Magna”, permitindo absurdos como, por exemplo, a retomada de reservas indígenas pela União “com base em critérios subjetivos, para não dizer racistas, como ‘alteração de traços culturais das comunidades”, destaca o Observatório do Clima, um dos signatários.
Apenas esse dispositivo coloca em risco imediato pelo menos 66 territórios já demarcados, homologados e registrados, habitados por mais de 70 mil indígenas e com uma área total de 440 mil hectares. Diz a carta: “A possibilidade é uma nítida afronta ao artigo 231, da Constituição”.
A permissão de venda, compra e arrendamento de terras indígenas também golpeia, de forma brutal, o princípio norteador da Carta Magna: “as terras indígenas são bens indisponíveis, dedicadas à preservação da cultura e do modo de vida dos povos”.
O PL vulnerabiliza a proteção das terras indígenas também no que diz respeito à intrusão de terras indígenas, ou seja, a retirada de invasores enquanto o processo de demarcação não é concluído. Isso transforma esses territórios e a Amazônia brasileira, em especial, “em terras de ninguém, completamente desprotegidas da atuação legítima do Estado brasileiro no combate ao crime organizado e à violência“.
Vale destacar que, além proteger quase 700 mil pessoas, “as terras indígenas do Brasil também são fundamentais para a segurança climática“: somente na Amazônia, armazenam o equivalente a 42 bilhões de toneladas de gás carbônico, e são os territórios menos desmatados do país”.
Segundo o MapBiomas, em 2021, menos de 2% da perda de vegetação nativa no país aconteceu em terras indígenas, contra 9% em unidades de conservação e 80% em áreas privadas.
Leia aqui a Carta a Lula, aqui, ou abaixo, na íntegra.
Contra o genocídio e o desmatamento, a única resposta é o veto integral
“Em 27 de setembro, o Senado Federal aprovou por 43 votos a 21 o PL 2.903, que constitui a maior violação aos direitos humanos e às terras indígenas desde a redemocratização do país. O texto, aprovado às pressas, é flagrantemente inconstitucional, um atentado à democracia e separação dos poderes. Se promulgado, constituirá golpe mortal ao núcleo da Constituição de 1988.
O projeto de lei será encaminhado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Como é sabido, ele contraria expressamente decisão do Supremo Tribunal Federal, que rejeitou por ampla maioria a tese inconstitucional do marco temporal para a demarcação de terras indígenas.
Ocorre que o marco temporal é apenas uma das gravíssimas inconstitucionalidades e violações de direitos do texto aprovado pelo Congresso Nacional. O PL desmonta, em vários de seus dispositivos, o próprio conceito de terra indígena consagrado da Carta Magna. Exemplos disso são a possibilidade de retomada de “reservas indígenas” pela União a partir de critérios subjetivos, como a alteração de traços culturais ou “outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”.
Com isso, coloca em risco imediato pelo menos 66 territórios já demarcados, homologados e registrados, habitados por mais de 70 mil indígenas e com uma área total de 440 mil hectares. A possibilidade é uma nítida afronta ao artigo 231, da Constituição, e também avilta e vilipendia o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, previstos no artigo 5º, XXXVI, da Constituição.
Em outro ponto, o projeto aprovado pelos senadores autoriza “a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico”, o que poderá ocorrer “independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas”, ou seja, sem nenhum tipo de consulta aos povos diretamente afetados, conforme previsto em tratados internacionais ratificados pelo país.
Segundo o projeto, o direito indígena de usar o território e seus recursos naturais a a ser submetido ao “interesse da política de defesa e soberania nacional”, um conceito indeterminado dentro do qual pode caber qualquer coisa e que seguramente será usado para facilitar a implantação dessas grandes obras nesses territórios, o que levará a um aumento de invasões, do desmatamento e de ameaças a seus habitantes.
De forma impressionante e inédita, o PL acaba com a política de não contato com povos que vivem em isolamento, o que aria a ser permitido em casos de “utilidade pública”. Essa mudança radical constitui uma ameaça à própria existência desses povos, que são vulneráveis a doenças comuns.
Além dessas inissíveis violações, a proposta impede a retirada de invasores das terras indígenas enquanto o processo de demarcação não for concluído, transformando as terras indígenas e a Amazônia brasileira em terras de ninguém, desprotegidas da atuação legítima do Estado brasileiro no combate ao crime organizado e à violência.
Tentar inviabilizar os processos de demarcação, abrir terras indígenas para o arrendamento transvestido de “parcerias” e autorizar a plantação de transgênicos tem como fim último consolidar invasões, acabar com o usufruto exclusivo dos indígenas às riquezas dos lagos, rios e solos existentes em suas terras, extinguir a diversidade biológica de sementes nativas e crioulas, ameaçar a segurança alimentar e, por fim, inviabilizar que os povos indígenas continuem existindo como povos.
As terras indígenas são as áreas mais ambientalmente conservadas da Amazônia brasileira, protegem 24% do que restou de floresta e prestam um inestimável serviço ambiental a todos brasileiros, como a manutenção da regularidade de chuvas no Centro-Sul do país.
Por todas essas razões, as entidades signatárias recomendam o veto integral do texto pelo Presidente da República. A sociedade brasileira não pode mais itir a institucionalização da barbárie e espera que o Presidente da República cumpra com seus deveres constitucionais e garanta o restabelecimento dos direitos fundamentais e humanos dos povos indígenas.
Assinam esta carta:
- 350.org Brasil
- 5 Elementos Educação para Sustentabilidade
- ActionAid
- Aliança Nacional LGBTI+
- Apremavi – Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida
- Arayara, Instituto Internacional
- Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
- Associação Amigos do Peixe-boi (AMPA)
- Associação Civil Alternativa Terrazul (Alternativa Terrazul)
- Associação de Saúde Ambiental e Sustentabilidade
- Associação para a Gestão Socioambiental do Triângulo Mineiro (Angá)
- Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS)
- Avaaz
- Cátedra Sustentabilidade da Unifesp
- Centro Internacional de Água e Transdisciplinaridade (CIRAT)
- Centro Popular de Direitos Humanos (DH)
- Clima de Mudança
- Climainfo
- Conectas Direitos Humanos
- Coordenação do Setor de Pesquisa do ICH (Instituto de Ciências Humanas da PUC-MINAS)
- Força Ação e Defesa Ambiental (FADA)
- Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos (FADDH)
- Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista
- Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas
- Fundação Ecotrópica – Fundação de Apoio à Vida nos Trópicos
- Fundação SOS Mata Atlântica
- Fundação Vitória Amazônica (FVA)
- Gambá
- Girl Up Brasil
- Greenpeace Brasil
- Imazon – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia
- Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos
- Instituto Clima de Eleição
- Instituto de Estudos da Religião (ISER)
- Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora)
- Instituto de Referência Negra Peregum (Peregum)
- Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS)
- Instituto DH
- Instituto Escolhas
- Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social
- Instituto Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena
- Pacto Nacional pela Erradicação do trabalho Escravo (InPACTO)
- Instituto Perifa Sustentável
- Instituto Physis – Cultura & Ambiente
- Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN)
- Instituto Socioambiental (ISA)
- Instituto Talanoa
- Kurytiba Metropole (KM)
- Mater Natura – Instituto de Estudos Ambientais
- MNU Movimento Negro Unificado SP
- Observatório do Clima (OC)
- OCEANA
- OPAN – Operação Amazônia Nativa
- Oxfam Brasil
- PNBE – Programa Nacional Biblioteca Escola
- Projeto Saúde e Alegria (PSA)
- Rede GTA (Grupo de Trabalho Amazônico)
- Seja Democracia
- UNIperiferias
- Uma Gota No Oceano
- União de Entidades Ambientalistas do Paraná (UNEAP)
- WWF Brasil
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Com informações do Observatório do Clima (OC) e da carta
Foto: Ricardo Stuckert/PR (setembro 2023)