
José “Pepe” Mujica partiu ontem, 13 de maio de 2025, aos 89 anos (completaria 90 daqui uma semana), em sua chácara em Rincón del Cerro, nos arredores de Montevidéu, no Uruguai, onde estava sob cuidados paliativos, na companhia da família e da companheira de toda a vida, Lucía Topolanski.

Foto: Embaixada dos EUA no Uruguai / Wikimedia Commons
A informação foi confirmada por Yamandú Orsi, atual presidente do Uruguai – apoiado por Mujica -, nas redes sociais. “É com profundo pesar que anunciamos o falecimento do nosso colega Pepe Mujica. Presidente, ativista, líder. Sentiremos muita falta de você, querido velho. Obrigado por tudo o que você nos deu e pelo seu profundo amor pelo seu povo”.
O último pedido de Pepe se referiu a seus despojos: após cremado, suas cinzas deveriam ser enterradas ao lado da cova de Manuela – sua famosa cadela de três patas, que conviveu com ele por 22 anos e morreu em 2018 – sob uma sequoia. Ela perdeu uma das patas atropelada acidentalmente por ele mesmo, com um trator, e era sua favorita entre os animais de estimação que mantinha: cães, gatos e galinhas.

suas cinzas serão enterradas a seu pedido, sob uma sequoia
Foto: reprodução das redes sociais
Desde abril de 2024, enfrentava um câncer de esôfago. Em entrevista ao NY Times, ele compartilhou detalhes de sua luta contra a doença e disse que se sentia “destruído”, mas tentava manter o espírito combativo. No entanto, o câncer se alojou no fígado, provocando metástase, e o derrotou.
Em janeiro deste ano, anunciou que a doença havia se espalhado e que não continuaria com o tratamento. “Estou morrendo”, declarou publicamente. “O guerreiro tem direito ao descanso”.
Hoje, milhares de uruguaios foram às ruas de Montevidéu para acompanhar o cortejo fúnebre do ex-presidente querido. O corpo saiu da sede da presidência, na Praça da Independência, e seguiu até o Palácio Legislativo, ando por diversos pontos da cidade. O velório está aberto ao público e segue até amanhã.
Ontem (13), em nota, o presidente Lula declarou: “Amanheci em Pequim com a triste notícia de que Pepe Mujica partiu hoje, nos deixando cheios de tristeza, mas também de muitos aprendizados. Sua vida foi um exemplo de que a luta política e a doçura podem andar juntas. E de que a coragem e a força podem vir acompanhadas da humildade e do desapego”,
Hoje, ele confirmou que, após retornar da China, viajará ao Uruguai para acompanhar o enterro do amigo Mujica.
Seu carro icônico era cobiçado por milionários
Desde que foi diagnosticado com câncer e iniciou os tratamentos de radio e quimioterapia, Mujica não dirigiu mais o VW fusca azul claro que mantinha impecável desde 1987 (a produção no Brasil cessou em outubro de 1986) e ficou famoso por ser usado como “carro oficial” quando ele foi presidente.
Sempre abdicou de luxos e privilégios e o carro icônico – além de outro, da mesma marca, só que azul escuro e mais antigo – eram seus únicos patrimônios.
Em janeiro de 2023, durante visita oficial do presidente Lula ao Uruguai, levou o amigo para ear em seu fusquinha, com direito a registro de Ricardo Stuckert, o fotógrafo oficial da presidência. “É brasileiro [referindo-se ao carro], vai durar mais do que eu”, comentou na ocasião.

e andou em seu fusquinha azul, brasileiríssimo
Foto: Ricardo Stuckert / PR
De tão especial, o fusca azul claro se tornou objeto de desejo de milionários, que ironia! Despertou o interesse de colecionadores e autoridades estrangeiras, incluindo um sheik árabe (cuja identidade não foi revelada) que, em 2014 – durante a cúpula do G77+China, na Bolívia -, ofereceu US$ 1 milhão (cerca de R$ 2,5 milhões) para comprá-lo. “Os seres humanos têm fetiches e precisam de certos símbolos materiais”, justificou.
Segundo a publicação boliviana Búsqueda, Mujica chegou a estudar a proposta, mas não por apego ao dinheiro, que doaria para uma universidade local ou para o programa social Plan Juntos. O negócio não se concretizou
E esta não foi a única proposta que recebeu. De acordo com a BBC, outras foram feitas, entre elas a do então embaixador do México no Uruguai, Felipe Enríquez, que propôs uma troca: dez picapes 4×4 pelo fusquinha.
Se fechasse negócio com Enriquez, Mujica doaria as picapes para o escritório de saúde pública do Uruguai ou para seus assessores de campanha. E disse mais: leiloaria o Fusca com prazer porque não tinha “nenhum compromisso com carros”. Pepe se foi e o fusquinha cobiçado ficou. Seu destino deve ser decidido por Lucia.
Político ímpar, líder amado
José Alberto Mujica Cordano deixou um legado indelével, não apenas por sua trajetória como militante e político, mas também por seu estilo de vida simples e austero, o compromisso incansável com os direitos humanos, com os pobres e com a democracia. Não à toa foi chamado de “o presidente mais pobre do mundo”. Ostentação não fazia parte de seu dicionário e, quanto menos tivesse, mais livre seria, dizia.

o amigo Lula, preso para garantir a eleição de Bolsonaro em 2018
Foto: Ricardo Stuckert
Na presidência do Uruguai, de 2010 e a 2015, promoveu os direitos civis e políticas progressistas como a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, do aborto e da maconha avanços na educação e a distribuição de renda. Com ele, o salário-mínimo aumentou 250%.
Antes que julgamentos morais possam habitar corações e mentes, vale destacar os argumentos de Mujica sobre as pautas mais polêmicas que colocaram o Uruguai na vanguarda dos desafios da atualidade.
“Não é bonito legalizar a maconha, mas pior é entregar gente ao narcotráfico. A única dependência saudável é a do amor”, justificou Mujica, que se recusava a continuar com a guerra ao narcotráfico. “Até agora, o combate repressivo não deu resultado”. Venceu a guerra e o Uruguai se tornou o primeiro país do mundo a legalizar a produção e a distribuição da maconha, mas com o controle direto do Estado.
Sobre o casamento entre pessoas do mesmo gênero, defendeu o que chamou de “matrimônio igualitário”: “O matrimônio gay é mais velho que o mundo!”, exclamou. “Tivemos Júlio Cesar, Alexandre, o Grande… É uma realidade objetiva. Existe. Não legalizá-lo seria torturar as pessoas, inutilmente”.
E, em seu governo, o Uruguai foi o segundo país da América Latina a legalizar o aborto. Ele era contra do ponto de vista pessoal e moral, mas apoiava a medida como política pública: “Porque não deixamos as mulheres sozinhas com seu drama. Tentamos apoiá-las psicológica e economicamente. Com frequência não são só exploradas, mas também sacrificadas e, sobretudo, as mais pobres que têm ainda mais dificuldades que acabam com o pior atendimento”.
Em discurso na Assembleia Geral da ONU, em 2012, o líder chamou a atenção do mundo ao criticar o consumismo desenfreado e ao questionar o modelo econômico atual, que ataca o planeta e agrava as desigualdades sociais.
Outra bandeira que Mujica defendeu foi a do alerta sobre a crise climática. Na conferência da ONU de 2012, a Rio+20, no Rio de Janeiro, defendeu a natureza: “Que se aria com este planeta se os indianos tivessem a mesma proporção de carros por família que têm os alemães? Quanto oxigênio sobraria para podermos respirar?”.
Já na 11ª Conferência da Juventude Latino-Americana sobre Mudanças Climáticas (COY11), em Florianópolis, Santa Catarina, em 2015, declarou: “A economia não pode ser separada da ética e da conduta humana”.
Coerência, simplicidade e justiça
Agricultor de berço, Mujica foi guerrilheiro (integrava o grupo Tupamaros) e, por isso, foi preso… três vezes. Nas duas primeiras conseguiu fugir, até que, em 1972, militares o prenderam novamente e o mantiveram sob tortura e isolamento por 14 anos (o filme ‘Uma noite de 12 anos’, de 2018, indica que foram 12 anos). Em 1985, deixou a prisão beneficiado por um decreto de anistia.
Nos anos em que esteve preso, um dos instrumentos de tortura usado por militares para tentar deixá-lo louco e desestabilizado foi impedir que tivesse o a livros, o que ocorreu por sete anos. Ele quase enlouqueceu, conta o jornalista Jamil Chade.
Em 1989, foi eleito deputado, depois se tornou senador, assumiu o ministério da Pecuária, Agricultura e Pesca e, após sua trajetória como presidente que terminou em 2016, foi novamente eleito senador, até que se aposentou em 2020 por motivos de saúde.
Dedicou os últimos anos de vida ao cuidado das plantas em sua modesta chácara e doou a maior parte do salário de ex-presidente para projetos de combate à pobreza.

Foto: reprodução nas redes sociais
Sua mensagem de coerência entre discurso e prática, simplicidade, amor à terra e luta pela justiça social marcou milhões de pessoas em todo o continente e no mundo e permanecerá viva por gerações. Como ele mesmo disse, uma vez: “Os homens am, as causas permanecem”. E as de Mujica foram e continuarão sendo como guias para quem acredita que é possível construir um mundo justo, igualitário, inclusivo e que respeite a natureza.
Para ampliar sua voz
Graças à sua disposição para falar, participar de mobilizações e dar entrevistas, nos deixa de “herança” um acervo de vídeos, bastante difundidos nas redes sociais – ontem, em especial – para que possamos ouvi-lo e ampliar sua voz, sempre.
Também deixou um repertório de frases potentes e inspiradoras, que falam ao coração e à alma dos humanistas como ele. Selecionei algumas, com as quais finalizo este texto em sua homenagem.
“Que sentido tem a vida se nos tiram a esperança de sonhar com um mundo um pouco melhor?”
“A vida é linda se dedicada a uma causa de progresso humano”.
“A vida não é só trabalhar. Tem que se deixar um capítulo para as loucuras que cada um tem. Você só é livre quando gasta tempo da sua vida com coisas que te motivam”.
“Não sou pobre. Sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com pouco para que as coisas não roubem minha liberdade”.
“Ou você é feliz com pouco, com pouca bagagem, pois a felicidade está em você, ou você não consegue nada. E esta não é uma apologia da pobreza, mas uma apologia da sobriedade”.
“A vida está cheia de tropeços e fracassos, mas é bonita. Almeje o topo, com generosidade”.
“A vida escapa e se vai minuto a minuto e não podemos ir ao supermercado comprar a vida. Então lutem para vivê-la, para dar conteúdo a ela”.
“Peço aos jovens para que não se sintam derrotados. O verdadeiro triunfo da vida é recomeçar e levantar cada vez que se cai – em tudo: no trabalho, no amor e na esperança. Derrotados são aqueles que param de lutar”.
“Inventamos uma montanha de consumos supérfluos, comprando e descartando, e estamos gastando tempo de vida porque quando você compra algo, não compra com prata, mas compra com tempo de vida que você teve que gastar para ter a prata. E tem um detalhe: a única coisa que não se compra é a vida, a vida se gasta. E é miserável gastar a vida para perder a liberdade”.
“Quanto lixo, quanta riqueza, quanto esforço humano! Quantas coisas tiramos da terra e desperdiçamos energia e esforço humano precisamente porque o fundamental não é a felicidade humana ou a vida humana, mas, sim, a acumulação. Isso tem que ser discutido. E a esperança que há está com vocês [jovens], que têm capacidade de chamar os governos à realidade porque, no fundo, a crise ecológica existe por fraqueza política. E só as decisões políticas podem mudar essa realidade”.
“Quero o progresso material, mas, antes, quero o amor à vida. Porque o crescimento econômico não pode ser a finalidade, tem que ser um meio”.
“O fundamental é como as pessoas am pela vida. Se tem tempo para cultivar algo único e verdadeiro, escolha os afetos. E o que são os afetos? O amor explosivo, quando você é jovem, a família, os filhos, os amigos. Quando você fica velho, o amor é um hábito doce, uma mansidão melancólica, um truque, um entretenimento, um momento no qual contamos histórias que temos vivido porque, no final das contas, que merda nós levamos quando vamos ao caixão?”.
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Foto: Fábio Valadares / Agência Câmara de Notícias (Mujica na posse de Lula em janeiro de 2023)